segunda-feira, 13 de outubro de 2014

As harmonizações: com comida, vinho



Um vinho é um alimento demasiado sério para ser consumido de qualquer maneira. Da forma como é servido depende o sucesso ou o insucesso de uma refeição, o prazer ou a frustração de um momento especial.
Os cristãos, pelo menos certos cristãos, gostam de seguir à risca os conselhos do confessor do rei Luís XIII, P. Sirmond, e bebem vinho sempre que se coloca alguma das seguintes cinco condições: a chegada de um amigo que se quer celebrar, a sede do momento que precisa de ser saciada, a sede futura que se pretende evitar, a bondade do vinho que se quer enaltecer ou qualquer outro motivo não previsto nos anteriores.

O vinho serve para tudo: para fazer as mulheres felizes, “desde que seja o homem a bebê-lo”, como diria Camilo José Cela; para curar tristezas, para buscar a inspiração poética e até para chegar à verdade (Kierkegaard). Mas a sua verdadeira função é acompanhar comida, podendo à volta da mesa, se o vinho for bom e bebido na medida certa, cuidar da saúde, alimentar a amizade, despertar o amor, afastar o tédio e chamar a poesia e a essência das coisas.

É verdade que o homem é o único animal que bebe sem ter sede, mas isso é uma conquista, não um exagero da civilização. E conquista ainda maior é podermos desfrutar do prazer de harmonizar vinhos com outros alimentos.

Esquecemos, para já, o serviço de sala e de copos — assunto já mais refinado mas importante. O mais decisivo é chegar à combinação perfeita entre vinho e comida. Um mau vinho pode estragar a melhor refeição. O contrário já não é tão válido, embora uma má refeição nos possa impedir de entender o vinho e de apreciá-lo em toda a sua plenitude. O importante é conseguir que o vinho e a comida ganhem com a associação e que ambos proporcionem mais prazer juntos do que se forem consumidos separadamente.

Uma regra básica é esquecer o dogma “tinto para carne, branco para peixe”. Quase sempre é assim, mas há muitas excepções. O mais importante é começar por avaliar a densidade, o peso calórico, a textura e a composição do prato e pensar num vinho que possa encaixar-se nessas condições e, se possível, valorizar os ingredientes. Uma comida poderosa requer um vinho igualmente poderoso, mas um vinho potente tanto pode ser branco como tinto ou até mesmo fortificado. E pode dar-se o caso de uma comida potente casar bem com diferentes vinhos potentes.

Regra geral, comidas fortes e gordurosas, como estufados de carnes e cogumelos, polvo à lagareiro, cabrito no forno, cozido à portuguesa ou bacalhau assado ou cozido bem regado a azeite, requerem vinhos encorpados mas com muito boa acidez. Os tintos carnudos e estruturados são opções óbvias, porque os seus taninos se “colam” à gordura e às proteínas. Mas os brancos encorpados, com boa acidez, também podem ser perfeitos.

Um queijo curado velho, tipo Terrincho, requer um bom tinto, com tanino e volume. Mas já um queijo de pasta mole e sabor forte, do género serra da Estrela, pode harmonizar muito bem com um Porto Vintage ou um branco estruturado que fermentou e estagiou em madeira.

Uma boa harmonização tanto pode ser conseguida por contraste como por similaridade. Frutos secos, por exemplo, vão bem com brancos, sobretudo com brancos secos e fortificados. Um Porto branco seco ou um tawny, por exemplo, são as companhias ideais de amêndoas, nozes, avelãs, porque desenvolvem aromas e sabores semelhantes. Da mesma forma, se a comida for adocicada deve optar por vinhos ligeiramente adamados e pouco ácidos. Se o prato levar vinagre ou limão, então resultará melhor um branco cítrico e seco ou um tinto mais ácido.

A importância do escanção

Quando não souber como conseguir a melhor harmonização, entregue-se nas mãos de um especialista. Os escanções, ou sommeliers, existem para isso, não apenas para lhe servir o vinho. Um bom escanção tem a obrigação de lhe perguntar quanto está disposto a pagar e, em função da resposta, escolher o vinho que melhor se adequa ao prato que for escolher.

Na restauração actual, um escanção é quase tão importante como o chef de cozinha. Quase, porque se a comida for má ninguém vai querer beber vinho — só se for para esquecer a má experiência…. O escanção, se for bom, é o homem que elabora a lista de vinhos, que gere a cave, que descobre novidades, que antecipa ou acompanha tendências, que testa as melhores harmonizações antes de as aconselhar ao cliente. Se for mesmo bom, só teremos a ganhar se nos deixarmos guiar pelas suas sugestões.

Até há pouco tempo, a sugestão de vinhos estava a cargo do dono do restaurante — e a opção mais fácil e barata era sempre o vinho da casa. Ainda há inúmeros restaurantes que funcionam dessa maneira, mas há também cada vez mais restaurantes a trabalhar devidamente o serviço de vinhos.

“Há cada vez mais restaurantes com escanções, pois com a moda do vinho os proprietários já perceberam que eles são uma mais-valia; por outro lado, a exigência do cliente aumentou muito”, assegura Rodolfo Tristão, presidente da Associação Portuguesa de Escanções. Um restaurante de gama média e alta já não dispensa um sommelier. “Em Nova Iorque está a acontecer um fenómeno muito interessante. Antes era o chefe de sala que tratava do serviço de vinhos. Hoje, o escanção é o chefe de sala. Já dá para perceber a importância que o vinho ganhou na restauração”, sublinha o mesmo sommelier.

Em apenas uma década, o serviço de vinhos na restauração em Portugal também mudou muito, mas ainda se cometem muitos erros. “Já se conquistou uma coisa importante: a temperatura. Hoje já toda a gente sabe servir o vinho à temperatura certa. Agora é preciso ir educando no resto”, enfatiza Rodolfo Tristão. E o resto é muita coisa: quando e como decantar um vinho, qual a ordem de servir os vinhos, que tipo de copo utilizar…. Pode parecer etiqueta e preciosismo a mais, mas um bom serviço de vinhos é essencial para podermos tirar o máximo partido do vinho e da refeição. Como em quase tudo da vida, o que é bom dá sempre trabalho.Cinco dicas essenciais

Utensílios

No restaurante ou em casa, há alguns utensílios que não podemos dispensar para um bom serviço de vinhos. Obrigatório mesmo é um bom saca-rolhas, um decanter, uma manga de refrigeração ou um frappé (para encher de água e gelo e mergulhar lá a garrafa que se quer refrigerar) e um bom copo. Se quiser aprimorar-se, não dispense também um corta cápsulas e um termómetro para ver a temperatura do vinho no copo.

Ordem de servir os vinhos

É normal bebermos mais do que um tipo de vinho durante uma refeição. Uma regressa essencial é começarmos com vinhos secos, tipo brancos sem madeira ou um champanhe ou espumante brutos. Se iniciarmos o serviço com vinhos doces, vamos prejudicar a percepção dos vinhos seguintes. Depois, o percurso normal é irmos aos brancos, primeiro os sem madeira, depois os fermentados e estagiados em barrica; seguirmos com os tintos, dos mais novos para os mais velhos; e acabarmos com vinhos doces (colheitas tardias, Moscatel, Vinho do Porto) ou novamente com champanhes ou espumantes brutos, cuja frescura nos limpa e refresca a boca. Brancos mais gordos e tintos encorpados também podem ser perfeitos para certas sobremesas.
Temperatura dos vinhos

Esqueça essa ideia de que o vinho se deve beber à temperatura ambiente. Basta imaginar como seria beber um tinto no Verão à temperatura ambiente. Em termos simples, vinhos quentes de mais só cheiram e sabem a álcool. Frios de mais, não cheiram e não sabem a nada.

Um espumante ou champanhe deve ser servido entre os 6º e os 8º C; os brancos mais frutados e simples devem estar entre os 8º e os 10º C; os brancos com mais corpo e os brancos doces e alguns licorosos como o Porto Tawny entre os 12º e os 14º C; os tintos leves entre os 14º e os 16º C; e os tintos encorpados e os Porto LBV e Vintage entre os 16º e os 18º C. Tenha sempre em atenção que o vinho aquece depressa no copo, pelo que é preferível servi-lo sempre um pouco mais fresco do que o recomendado ou então ir recorrendo a um frappé.

Para refrescar um vinho, é preferível um frappé com água e gelo ao congelador. É mais rápido.

O copo certo

Há momentos tão descontraídos, como um piquenique, por exemplo, em que é pouco importante a escolha do copo. Nestes casos, o melhor é optar também por vinhos mais simples.

Em casa ou no restaurante é diferente. Um bom copo pode fazer toda a diferença. O prazer de um vinho resulta da soma de diferentes sensações: olfactivas, gustativas e até visuais. Ora, está mais do que provado que o comportamento do vinho varia de acordo com o tipo de copo em que é servido. A grossura do vidro e a forma do copo influenciam fortemente a percepção dos diferentes odores e sabores do vinho, ao ponto de já haver copos para castas específicas.

O formato tulipa é o mais indicado, porque concentra os odores na boca do copo e facilita a sua percepção. Depois, consoante o tipo de vinho, é necessário escolher a forma certa de tulipa e o tipo de cristal. Quanto mais fino melhor. Hoje, já existem muitos modelos bons no mercado. Os melhores podem ser demasiado caros. Mas por dois ou três euros já é possível comprar um bom copo.

Decantar

Passar o vinho da garrafa para um decanter de vidro é uma operação que pode fazer toda a diferença. Mas só se justifica em condições muito concretas: quando o vinho tenha acumulado depósito no fundo da garrafa, por não ter sido filtrado; quando possua já alguma idade e possa apresentar algum aroma de garrafa e de redução; quando, mesmo sendo jovem, ganhe com algum arejamento. Um vinho muito velho, a não ser um Porto Vintage, não ganha em ser decantado. Os seus aromas e sabores são tão delicados e frágeis que podem desaparecer rapidamente em contacto com o ar. Nestes casos, o melhor é ir servindo o vinho com muito cuidado. Nos vinhos com depósito, deve-se deixar a garrafa de pé durante 12 a 24 horas antes de a decantar ou servir.  


Por Pedro Garcias

Sem comentários:

Enviar um comentário